O presente artigo busca trazer a origem do Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica (IDPJ) - Disregard Doctrine - trazendo um breve relato histórico e sua desvirtuação quando da aplicação na Justiça do Trabalho.

Inicialmente, segundo a teoria clássica do Direito Societário, quando uma pessoa jurídica adquire personalidade própria, esta passa a ter existência distinta, momento em que suas obrigações e direitos não se confundem com a dos seus sócios.

No entanto, o Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica foge a esta regra, pois “quebra a proteção” dada pela personalidade jurídica da sociedade, permitindo que seus sócios ou administradores integrem o pólo passivo das ações e, assim, sejam diretamente responsabilizados pelos atos da pessoa jurídica.

Trazendo à luz um pouco da história, a Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica, originalmente chamada de Disregard Doctrine, Disregard of Legal Entity ou Lifting the Corporate Veil, adveio do sistema jurídico anglo-saxão (Common Law).

O primeiro caso registrado da aplicação da Disregard Doctrine ocorreu em 1809 no caso Bank Of United States vs. Deveaux, no qual o juiz norte-americano, Marshall, entendeu por estender aos sócios os efeitos da personalidade jurídica da sociedade da qual eram partícipes. Cumpre ressaltar que a parte dominante da doutrina entende que neste caso, o Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica somente foi aplicado para preservar a jurisdição das Cortes Federais sobre as corporations, não podendo ser considerado um leading case, mas tão somente um marco no estudo do Instituto.

Avançando, em 1892, em caso envolvendo a Standart Oil, a Suprema Corte de Ohio criou outro precedente da Disregard Doctrine. A empresa fundada por John Davison Rockefeller em 1870, pouco tempo após sua criação, passou a controlar cerca de 90% a 95% da produção de petróleo nos Estados Unidos, criando um monopólio. Neste contexto, a Suprema Corte de Ohio decidiu pela aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, declarando ser ilegal o monopólio criado pela Standart Oil.

Cinco anos depois, em 1897, tivemos a disputa mais famosa envolvendo a Disregard Doctrine, o caso Salomon v. Salomon & Co., considerado pela maioria dos doutrinadores como o leading case do instituto em apreço. Em síntese, a justiça optou por desconsiderar a pessoa jurídica da sociedade fundada por Aaron, entendendo que houve fraude no negócio. Contudo, a decisão monocrática foi posteriormente reformada pela House of Lords, pois entendeu que empresa teria sido constituída de forma válida, ou seja, sem nenhum vício para as leis da época (a lei somente exigia a participação de sete pessoas criando uma pessoa diversa de si mesma).

No Brasil, Rubens Requião foi o primeiro doutrinador brasileiro a sustentar a aplicabilidade da Disregard Doctrine no país. A expressão “desconsideração da personalidade jurídica" foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro através da tradução original disregard of legal entity, pelo próprio Requião. Segundo ele, a fraude ou o abuso de direito seriam elementos essenciais que autorizariam o poder judiciário a quebrar o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, dando possibilidade de se atingir os bens dos sócios, quando do mau uso da sociedade.

A desconsideração da personalidade jurídica foi incorporada, inicialmente, pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC) - 1990 - e, posteriormente, pelo Código Civil (CC) - 2002. Mais tarde, referido instituto também foi contemplado quando da publicação do Código Tributário Nacional (CTN), que trouxe a questão em seu art. 135.

Na seara trabalhista, o primeiro diploma que prestigiou a possibilidade da aplicação da desconsideração da personalidade jurídica foi o art. 10 do Decreto nº. 3.708/19, que assim asseverou: “Os sócios gerentes ou que derem nome à firma não respondem pessoalmente pelas obrigações contraídas em nome da sociedade, mas respondem com esta e para com terceiros solidária e ilimitadamente pelo excesso de mandato e pelos atos praticados com violação do contrato ou da lei.”

Mais tarde, com a entrada em vigor da Lei 13.105/15 (Novo Código de Processo Civil), a desconsideração da personalidade jurídica veio disciplinada nos arts. 133 a 137, trazendo consigo inovações quanto ao procedimento adotado. Quando da incorporação pelo NCPC do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, este foi considerado por grande parte da doutrina trabalhista como sendo incompatível com o Direito do Trabalho.

Maurício Godinho Delgado em sua obra “A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017” elenca, a título ilustrativo, pontos relevantes de incompatibilidade, a saber:

“A título meramente ilustrativo, citem-se alguns pontos relevantes de incompatibilidade, todos enfatizados pelo Direito Processual do Trabalho e pela CLT: execução de ofício pelo Magistrado; princípio da efetividade do processo de execução, que se mantém presente em caso de não cumprimento espontâneo da sentença; garantia do contraditório e da produção probatória, logo a seguir ao bloqueio de valores ou penhora de bens do sócio, compatibilizando os princípios da efetividade e celeridade processuais com o princípio do contraditório e da ampla defesa; recorribilidade imediata apenas das sentenças em processo de execução, porém não das decisões interlocutórias, que poderão ser questionadas somente no bojo do recurso principal; simplificação real do processo do trabalho, de maneira a afastar regras instigadoras de incidentes apartados, suspensões do processo, frustração da garantia efetiva do juízo, recursos internos incidentais variados e outras modalidades de dilação do resultado útil do processo judicial.”(DELGADO, M. e DELGADO, G. A reforma trabalhista no Brasil: com os comentários à Lei n. 13.467/2017, 2017. P.347)

Apesar da grande parte da doutrina trabalhista entender que o Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica é incompatível com o Direito do Trabalho, o Tribunal Superior do Trabalho, entendeu por acolher este instituto, conforme Instrução Normativa 39, artigo 6º: “Art. 6° Aplica-se ao Processo do Trabalho o incidente de desconsideração da personalidade jurídica regulado no Código de Processo Civil (arts. 133 a 137), assegurada a iniciativa também do juiz do trabalho na fase de execução (CLT, art. 878).”

Com a entrada em vigor da Lei 13.467/17 – Reforma Trabalhista, não restou qualquer dúvida quanto à compatibilidade do Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica na Justiça do Trabalho, conforme o disciplinado no artigo 855-A da CLT.

Na doutrina, a teoria da desconsideração da personalidade jurídica se divide entre Teoria Maior – (Código Civil) e Teoria Menor (Código de Defeso do Consumidor).

Schiavi, em sua obra A reforma trabalhista e o processo do trabalho: aspectos processuais da Lei n. 13.467/17 / (SCHIAVI, Mauro — 1. ed. — São Paulo : LTr Editora, 2017., p. 123), prefere classificar essas duas teorias como subjetiva e objetiva, sendo que na primeira, o patrimônio dos sócios somente pode ser atingido quando: “a pessoa jurídica não apresentar bens para pagamento das dívidas” ou “de atos praticados pelo sócio com abuso de poder, desvio de finalidade, confusão patrimonial, ou má-fé” e na segunda, adotada pela moderna doutrina e jurisprudência trabalhista, “disciplina a possibilidade de execução dos bens do sócio, independentemente de os atos deste violarem ou não o contrato, ou haver abuso de poder. Basta a pessoa jurídica não possuir bens para ter início a execução aos bens do sócio.”

Conforme verificado, a origem do Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica preconizou a teoria subjetiva. Contudo, quando da aplicação na Justiça do Trabalho, houve uma desvirtuação das regras “originais” do Instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, pois nesta especializada, aplicou-se a regra da teoria objetiva, não sendo necessária a comprovação de fraude ou de abuso de direito para ser deferida a desconsideração, bastando que a pessoa jurídica não tenha condições de arcar com a execução.

Augusto Branco Del Masso
augustomasso@mandaliti.com.br