A crescente judicialização de ações trabalhistas com pedidos de reconhecimento de vínculo de emprego e equiparação às categorias bancária e financiária tem chamado atenção pela frequência e pelas inconsistências que as fundamentam. Em muitos casos, trata-se de tentativas de reinterpretar a estrutura de empresas do setor de meios de pagamento como se fossem instituições bancárias, distorcendo a realidade jurídica e econômica dessas organizações.
De fato, há uma linha tênue entre bancos e instituições de pagamento quando se observa apenas a interface tecnológica e a relação com o consumidor. No entanto, a diferença jurídica entre essas figuras é clara, objetiva e regulamentada, especialmente à luz da Lei nº 12.865/2013 e das normativas do Banco Central. Enquanto os bancos atuam com operações típicas do sistema financeiro nacional, as instituições de pagamento prestam serviços restritos à execução de transações e à gestão de contas de pagamento, sem operar crédito próprio ou captar recursos do público.
Atividades como a prospecção de clientes, a oferta de empréstimos sem negociação direta, a coleta de dados, o repasse de documentos sem análise de crédito ou manuseio de numerário, a antecipação de recebíveis e a comercialização de máquinas de cartão são exemplos de atividades que, por si só, não caracterizam funções típicas de bancários ou financiários.
Apesar disso, ações trabalhistas têm buscado a equiparação funcional e normativa com categorias do setor financeiro, baseando-se apenas na aparência das atividades exercidas e ignorando a regulamentação setorial e a estrutura organizacional das instituições envolvidas. A distorção se acentua quando decisões reconhecem vínculos empregatícios e direitos próprios de bancários ou financiários, mesmo em casos em que o trabalhador desenvolve atividades comerciais ou técnicas, alheias às funções típicas dessas categorias e sem possuir certificações ou qualificações exigidas pelos órgãos reguladores, como o Banco Central.
Esse fenômeno traz à tona um risco jurídico que vai além da matéria de fundo: o solipsismo judicial — expressão que descreve decisões tomadas com base em convicções pessoais do julgador, desconectadas do conteúdo probatório dos autos e dos limites objetivos do ordenamento jurídico. O problema não está na liberdade de convencimento, mas no uso dessa liberdade sem ancoragem empírica ou respaldo legal. Trata-se de um desvio perigoso, pois compromete o devido processo legal, o contraditório e a segurança jurídica.
É importante lembrar que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADPF 324 e o RE 958.252, reconheceu expressamente que a subordinação estrutural não configura, por si só, vínculo empregatício. As decisões firmaram tese com repercussão geral, reafirmando que a terceirização e outras formas de organização do trabalho são lícitas, desde que ausente subordinação jurídica direta.
Vale observar que o Tribunal Superior do Trabalho, ao julgar o Tema 177, fixou entendimento de que os empregados de administradoras de cartão de crédito devem ser enquadrados como financiários. Esse posicionamento, contudo, não se aplica automaticamente às instituições de pagamento, cuja atividade não envolve a administração de crédito em sentido estrito, mas sim a prestação de serviços de intermediação e liquidação de transações. Em outras palavras, o simples fato de o trabalhador estar vinculado a uma instituição de pagamento não significa que deva ser tratado como bancário ou financiário, sendo indispensável analisar a natureza da atividade exercida pela empresa. Do contrário, corre-se o risco de ampliar indevidamente o alcance da decisão do TST e confundir segmentos que possuem funções regulatórias e operacionais distintas no sistema financeiro.
Decisões em sentido contrário, baseadas em percepções subjetivas ou generalizações ideológicas, equivocam-se ao atribuir natureza bancária a estruturas que, por lei, não a possuem. Isso gera precedentes frágeis, que incentivam a judicialização em massa, elevam o custo regulatório e jurídico das instituições de pagamento e desestimulam a inovação no setor.
É fundamental que os julgadores compreendam os limites entre aparência e essência e reconheçam a importância de decidir com base em provas e normas aplicáveis, e não em juízos abstratos ou analogias forçadas. A atuação da Justiça do Trabalho deve, sim, pautar-se pela proteção ao trabalho, mas sempre respeitando os contornos legais de cada modelo de negócio.
O risco de se criar, por decisão judicial, uma simulação institucional que transforma empresas de pagamento em bancos afeta não apenas as relações de trabalho, mas o próprio ambiente regulatório e concorrencial do país. Isso não significa negar a realidade dos vínculos legítimos, mas, sim, reconhecer que nem toda relação funcional próxima configura vínculo empregatício — muito menos gera efeitos típicos da categoria bancária ou financiária.
O que está em jogo é mais do que uma tese jurídica: é a coerência e previsibilidade do sistema de justiça, valores indispensáveis para um mercado de trabalho saudável e um ambiente de negócios juridicamente seguro.
Texto por:
Régis Benante Ribeiro – Coordenador Jurídico
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