Desde a decretação do estado de calamidade pública decorrente do COVID-19, vêm sendo editadas medidas para flexibilização das relações de trabalho para o enfrentamento de tamanha crise, gerando inúmeras discussões jurídicas.

Antes de adentrarmos ao tema proposto, cabem alguns esclarecimentos importantes sobre a redução salarial que nortearão o presente artigo. O artigo 503 da Consolidação das Leis do Trabalho, assim dispõe:

Art. 503 É lícita, em caso de força maior ou prejuízos devidamente comprovados, a redução geral dos salários dos empregados da empresa, proporcionalmente aos salários de cada um, não podendo, entretanto, ser superior a 25% (vinte e cinco por cento), respeitado, em qualquer caso, o salário mínimo da região.

Parágrafo único - Cessados os efeitos decorrentes do motivo de força maior, é garantido o restabelecimento dos salários reduzidos."

No entanto, tal premissa encontra óbice em relação ao princípio da irredutibilidade salarial, ou seja, a segurança à intangibilidade salarial do empregado que veda o empregador de reduzir o salário do colaborador de forma arbitrária, salvo por acordo ou convenção coletiva. Este princípio encontra guarida expressa no artigo 7º, inciso VI, da Constituição Federal de 1988:

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

VI - irredutibilidade do salário, salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo;”

No mesmo sentido, a Lei 4.923 de 23 de Dezembro de 1965, que teve como escopo a instituição do cadastro permanente das admissões e dispensas dos empregados, estabeleceu medidas contra o desemprego e assistência aos desempregados. Em seu artigo 2º, prevê:

Art. 2º A empresa que, em face de conjuntura econômica, devidamente comprovada, se encontrar em condições que recomendem, transitoriamente, a redução da jornada normal ou do número de dias do trabalho, poderá fazê-lo, mediante prévio acordo com a entidade sindical representativa dos seus empregados, homologado pela Delegacia Regional do Trabalho, por prazo certo, não excedente de 3 (três) meses, prorrogável, nas mesmas condições, se ainda indispensável, e sempre de modo que a redução do salário mensal resultante não seja superior a 25% (vinte e cinco por cento) do salário contratual, respeitado o salário-mínimo regional e reduzidas proporcionalmente a remuneração e as gratificações de gerentes e diretores.

Em aquiescência, o também fundamento infraconstitucional, previsto no artigo 468 da CLT, veda expressamente a alteração contratual, de forma unilateral pelo empregador, de forma a causar prejuízo ao empregado, em consonância ao princípio da proteção ao trabalhador que proíbe alterações in pejus e, novamente, da proteção ao salário:

Art. 468 Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia.

O princípio da proteção influi em todos os segmentos do direito individual do trabalho, resvalando na própria perspectiva desse ramo ao construir-se, desenvolver-se e atuar como direito.

Superado o acima exposto, adentrando agora à discussão sobre a controvérsia existente a respeito da aplicabilidade ou não do artigo 503 da CLT, discorreremos brevemente sobre o fenômeno da recepção, explique-se, as normas infraconstitucionais anteriores à nova constituição e materialmente compatíveis com ela são recepcionadas pelo Poder Constituinte, que as engloba do mesmo modo que eram, normas infraconstitucionais.

Pois bem, em análise a redação textual do artigo em apreço, temos que ele faz parte do texto da CLT desde a sua entrada em vigor, que se deu no ano de 1943. Posteriormente a isso, a Constituição de 1988 assegura como direito de todo trabalhador a irredutibilidade salarial, salvo se convenção ou acordo coletivo dispuser o contrário (art. 7º, inciso VI, da CRFB/88).

Assim sendo, para parte da doutrina, o artigo 503 seria incompatível com a Constituição de 1988 e por ela não teria sido recepcionado, tendo em vista a redução salarial só ser possível mediante ajuste com a entidade sindical, sob pena de ilicitude e alto risco de condenação judicial posterior.

Contrariamente, existe entendimento de que o artigo. 7º, VI, da Constituição Federal não alcança situações de força maior, destarte, o artigo 503 teria sido, então, recepcionado.

Em complemento, sobre a Lei 4.923/65, a doutrina majoritária entende por tê-la sido recepcionada pela Constituição/88, isso porque, compatível em parte, mais precisamente quanto ao artigo 2º, levando-se em consideração, em situações excepcionais, ou seja, caso de força maior, o empregador abalado, mediante convenção ou acordo coletivo, e por tempo limitado de três meses, prorrogáveis, possa reduzir a jornada ou o número de dias de trabalho, acarretando, na redução proporcional dos salários no máximo em 25%, respeitado o mínimo.

Sem prejuízo do acima apresentado, diante das adversidades do cenário econômico vivenciado na atualidade, de casos extremos e de situação emergencial, como um evento de força maior, a interpretação das regras trabalhistas deve ser flexibilizada e harmonizada com o princípio da função social da empresa, que, dentre outras, prevê a proteção e a garantia de sobrevivência, impedindo possíveis dispensas e encerramento das atividades de estabelecimentos.

Por derradeiro, diante da situação jamais vivida pela sociedade, em situação de grande relevância e urgência, fora produzida a Medida Provisória 927/20, prevendo dentre outras, em seu artigo 2º:

Art. 2º Durante o estado de calamidade pública a que se refere o art. 1º, o empregado e empregador poderão celebrar acordo individual escrito, a fim de garantir a permanência do vínculo empregatício, que terá preponderância sobre os demais instrumentos normativos, legais e negociais, respeitados os limites estabelecidos na Constituição Federal.

Ou seja, embora não autorizada expressamente a redução salarial mediante o acordo escrito entre as partes, entendemos que a hipótese subsiste implicitamente no artigo 2º acima vislumbrado.

Pensando nisto, em que pese a existência de controvérsia, a redução salarial prevista no artigo 503 da CLT, podendo ser aplicada mediante acordo expresso entre as partes, levando-se em consideração a mantença dos empregos, com a consequente possibilidade de diminuição da taxa de desempregados, que, com certeza assolará nosso país, a busca pela economia minimamente estável, o caráter manifestamente emergencial e preocupante em que vivemos, entendemos que, significará permitir a manutenção e preservação da saúde empresarial e manutenção do contrato de trabalho.

Isso porque, diante da calamidade pública e do risco iminente de extinção em massa das empresas e dos empregos, os prazos e requisitos contidos no artigo 617 da CLT, para invocação do sindicato para fins de negociar coletivamente com a empresa seriam impraticáveis.

Reitere-se, a pandemia perpetrada pelo COVID-19, caracteriza-se, irrefutavelmente, situação de força maior, que, conforme explícito no artigo 501 da CLT, pode ser entendida como “todo acontecimento inevitável em relação à vontade do empregador e para cuja realização não tenha concorrido direta ou indiretamente”, portanto, consideramos como corretamente aplicável o contido no artigo 503 da CLT.

Deste modo, em detrimento do caráter extraordinário e temporário, considerando a gravidade do momento, entende-se como possível a devida aplicação da presente medida, visando abrandar o impacto na economia do país e com isso gerar menos situações catastróficas para trabalhadores, empresa e governo, de forma que é recomendável razoabilidade, flexibilização das regras trabalhistas e ponderação para análise de cada caso.

A título informativo, importa ressaltar que, apesar de produzir efeito jurídico imediato, a Medida Provisória necessita da posterior apreciação pelas Casas do Congresso Nacional, quais sejam, Câmara e Senado, para que então se converta definitivamente em lei ordinária. Em 01.04, tal medida aguardava providência à Secretaria de expediente para envio à Câmara dos Deputados.

Em complemento, ainda no dia 1º de abril, fora editada a Medida Provisória nº 936, instituindo o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, definindo como medidas do programa: o pagamento de Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, a redução proporcional de jornada de trabalho e de salários, e a suspensão temporária do contrato de trabalho. Ainda, reconhecendo a garantia provisória no emprego ao empregado que receber o Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, em decorrência da redução da jornada de trabalho e de salário ou da suspensão temporária do contrato de trabalho. Prevendo que as medidas de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho poderão ser celebradas por meio de negociação entre empregado e empregador.

Em continuidade, fora ajuizada ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, proposta pelo Partido Rede Sustentabilidade, em face da Medida Provisória 936/2020, em suma, objetivando o afastamento do uso de acordo individual para dispor sobre as medidas de redução de salário e suspensão de contrato de trabalho, julgada em 06 de abril da seguinte forma: “[...] defiro em parte a cautelar, ad referendum do Plenário do Supremo Tribunal Federal, para dar interpretação conforme à Constituição ao § 4º do art. 11 da Medida Provisória 936/2020, de maneira a assentar que “[os] acordos individuais de redução de jornada de trabalho e de salário ou de suspensão temporária de contrato de trabalho [...] deverão ser comunicados pelos empregadores ao respectivo sindicato laboral, no prazo de até dez dias corridos, contado da data de sua celebração”, para que este, querendo, deflagre a negociação coletiva, importando sua inércia em anuência com o acordado pelas partes”.

A decisão do Excelentíssimo Ministro Lewandowski acima destacada, propõe ainda mais insegurança jurídica em torno da Medida Provisória n.º 936, ao passo que determina que os acordos deverão ser comunicados aos sindicatos respectivos para que possam ter validade.

Conforme já explanado no discorrer do texto, a invocação dos sindicatos para fins de negociações coletivas seria impraticável neste momento. Além do que, a Constituição de 1988 consagra a liberdade de associação e determina que “ninguém será obrigado a filiar-se ou a manter-se filiado a sindicato” (artigos 5º, XVII, e 8º, V), portanto, ao optar pela não sindicalização, o empregado coloca-se fora da órbita da assistência sindical.

Assinale-se que não podemos desconsiderar a realidade brasileira, e assim sendo, o combate aos efeitos deletérios desta pandemia, por óbvio, devem assegurar o respeito aos direitos humanos fundamentais, sobretudo os decorrentes das relações de trabalho, e, especialmente, em consideração ao papel vital das organizações de empregadores e empregados na construção de respostas às crises, e por ser assim, sobre a redução salarial prevista no artigo 503 da CLT, tema central do presente trabalho, tenho que, inclusive como forma de administrar tamanho colapso, viabilizando a própria garantia de emprego, seria perfeitamente admitido pela ordem constitucional os acordos individuais promovidos entre empregador e empregado.

Rebecca Sorano Quintiliano

Advogada Trabalhista – Mandaliti Advogados

rebeccaquintiliano@mandaliti.com.br